«MARGINÁLIA»
ANTOLOGIA DE POEMAS, COM OS AUTORES
CECÍLIA VILAS BOAS, EDGARDO XAVIER, FRANCISCO VALVERDE ARSÉNIO,
JOÃO MORGADO, JOÃO CARLOS ESTEVES, JOSÉ BRITES INÁCIO,
JOSÉ GABRIEL DUARTE, JOSÉ LUÍS OUTONO
RITA PAIS e TEREZA BRINCO OLIVEIRA
A escritora já premiada Dra. Graça Pires, comentou:
MARGINÁLIA
(Antologia)
Poetas são vozes que não desistem de anunciar os tesouros
que se escondem no barro da nossa condição.
Miguel Torga, Diário V, 1951
Venho apresentar uma antologia. Dez poetas. Vozes partilhadas
a pretexto da poesia. Apoiadas na força e emoção das palavras e, talvez, na
construção de uma memória.
Vou falar de poesia. Manuel Gusmão dir-me-á:
“Incerta
chama
e desde logo esse fragmento da língua estremece e se
desdobra”[…]
Dez poetas. Dez vozes singulares. Uma antologia.
Marginália
Poemas que se querem margem. Poemas à margem das regras, da
moda, dos preconceitos. Poemas na margem dos livros que escreveram. Na margem.
Como se cada poema fosse um rio de água doce e cada verso desejasse saciar a
sede dos leitores. Como se cada poeta fosse um trovador itinerante a ocupar as
margens com um aceno no olhar. Como se, ao poema, nada mais fosse possível do
que a misteriosa realidade da sua concepção como linguagem poética, com tudo o
que a define e a reinventa.
Permiti-me tomar a antologia como a transparência de um
dizer que produz imagens com diferentes formas.
Vagueei por ela com a promessa de me encontrar nos temas
onde se demoraram os meus olhos.
Procurei entender a particularidade de cada poeta, de
cada poema, e percebi que o equilíbrio da apresentação de uma antologia deste
género, em que o título que a engloba faculta uma clara liberdade aos autores,
me permitia agregar alguma convergência temática onde concentrei a minha
atenção. É no contexto dos temas Amor e
Silêncio que comento cada poeta.
Dos ecos da tradição lírica portuguesa surge-nos sempre o
Amor como um ritual a que a poesia não é alheia e também o Silêncio, porque o
poeta é um persistente desafiador de silêncios. Não para calar o que sente, mas
para encontrar a voz com que potencia a sua expressividade. Ao ler estes
poetas, lado a lado, destaco de forma aleatória e sucinta o seguinte:
Rita Pais fala-nos da sedução do amor. O corpo inteiro
numa entrega. […] Quero no meu corpo/ os
movimentos, ondulantes/ que contorcem o teu/ na voracidade desta música/
felina/ entranhante/ estonteante/ ardente […] (p. 142). É o rumor dos
sentidos a fervilhar no sangue.
Em contraponto, a autora quer que o silêncio se quebre.
[…] Diz: Preciso da palavra de precioso
veludo/ pronunciada num passado ainda presente. […] (p.135). A autora quer um
silêncio habitado por outras lembranças. […] E continua: Expulso todas as palavras gastas/ que me esgotam./ Invento um léxico
paralelo/ que me pacifica. […], (p.136). Ela, a autora, quer um silêncio
que a deixe ouvir a vida.
Com Francisco Valverde Arsénio nos questionamos […] Será o amor uma emoção perpétua ou um estado
inabitado onde se mendigam as paixões? […] (p. 49). O poeta sabe, como
todos nós sabemos que o amor não se define. Sente-se. Conquista-se. Ganha-se e
perde-se.
Sabe também que o silêncio é um vínculo entre a
imaginação e a memória. E diz: Tenho
pressa em libertar este poema clandestino, sinto-o agitado neste silêncio
profundo, neste hiato vazio, neste espaço sem som. […] (p. 52). É um poeta
que anseia uma rua larga para os seus poemas. Talvez isso justifique a sua prosa
poética.
Nesta mesma linha de reflexão podemos ler José Gabriel
Duarte. Não sei justificar/ mas existe
amor. […] Talvez o amor/ não se
explique/ seja dogma/ ou talvez sexto sentido/ itinerante. […] (p.108) O
poeta a mostrar-nos a sua perplexidade sobre uma sensação tão complexa, e a estabelecer
a analogia entre a emoção e o racional.
Contudo, ele tinha um silêncio que teimava em habitá-lo e
[foi] contando os dias/ esquecendo os
anos/ marcando os instantes/ saboreando as horas […] Depois [procurou] entre as folhas soltas/ a página ainda
dobrada/ onde o poema nasceu/ e o verso cresceu. / Quando as palavras/
começaram a falar. (p.110-111). O silêncio é aqui a trama onde se tece a
fala do poema.
Há quem opte por fazer do amor uma escrita de corpo
inteiro. […] Corremos de mãos dadas até
ao rio/ como uns loucos apaixonados […] (p.19) diz-nos Cecília Vilas Boas,
adiantando noutro poema: Inteira, despida
me entreguei/ Quase morri de amor…[…] (p.23) No universo aqui construído há
lugar para o sonho associado ao prazer amoroso. E o silêncio entrelaça esses
sonhos como uma forma de abrir as portas às palavras luminosas. Absortos no silêncio/ escutamos no vento a
voz das nossas almas […] (p. 21) e diz ainda […] Lavrei em mim vales profundos, encantados/ e num silêncio volátil, tão
meu,/ quase alcancei o etéreo querer, tão puro, sonhado. (p. 22). Uma
poesia que é musical neste encantamento.
José Luís Outono diz-nos, em dois versos apenas, o tanto,
o quase tudo que o amor envolve. Tentei
escrever amor, com as letras mais simples./ Consegui apenas uma tormenta de
conjugações. (p. 122). É o sentimento do amor tão complicado quanto apetecido
e redentor.
Mas o poeta usa também a ferramenta da escrita para
mostrar que não é uma voz passiva sobre o que acontece à sua volta e faz do
silêncio um grito […] ouviram-se
rasgares/ confusos de palavras, como flores secas/ de um deserto sempre fútil,
ele nos diz (p.126). E porque perturbante é o mundo, prossegue […] Murmuram-se silêncios em traços
perturbadores […] (p.128). E as
cartas do louco baralho continuam a ditar sorte e cortes, como a semente
daninha, que tem direito a viver, argumentam […] (p.123). Um silêncio onde
se encontram pressentimentos e alarmes do coração deste poeta atento ao rumor
dos dias.
Há uma escrita onde o amor apenas se lê nas entrelinhas,
ou nos monólogos dialogados, apostando no poder sugestivo das imagens. É a de
João Carlos Esteves que o faz em poemas contidos como este: […] paixão é um instante/ que percorre as veias
e se aloja/ nas raízes do meu silêncio. (p.65). Silêncio, esse, que tem que
ser demorado para conter o brilho do olhar. Podemos lê-lo: Não me fales das gotas da chuva tombada no solo…/ tenho as mãos áridas/
e alma dormente na secura do silêncio […] (p. 63) ou ainda: Já só me encontro nos silêncios/ de
paisagens vazias de vozes e rostos […] (p. 64). Como se o autor riscasse na
voz um silêncio de fuga.
José Brites Inácio apenas no seu poema Amor guerreiro nos revela: […] apetecer-me-ia escrever uma carta de amor/
como as que amadurecem damascos […] (p.92). Um poema, todo ele, de amor e a
não ignorar a dimensão afectiva do quotidiano. Atento à Natureza e à Vida
pede-nos silêncio dizendo: Tenho visto o
silêncio, escrito por aí, recitado além/ e também dançando sem regra sob
magnólias floridas […] Inebriei-me
desse silêncio côncavo que me não largou mais,/ limpei à pressa duas lágrimas
intrigadas de abandono […] (p. 94-95). Senti a nostalgia do poeta, mas
gostei de ler noutro poema: Para mim e
para a minha janela são as aves que trazem os dias […] (p. 96)
Existe um erotismo sóbrio nas metáforas de João Morgado.
Logo no primeiro poema podemos ler […] Vem,
seduz o meu corpo/ sorve a haste sob o lençol/ […] e verás o meu corpo/ erguer-se
aprumado ao sol/ mostrando a força da espiga. (p. 77). O sentido das
palavras a desvendar intimidades, desnudando-se sem hesitações. Mas o poeta vê
o silêncio como um ritual de acertos e desvios. No seu poema intitulado Silêncio, diz-nos: Há o silêncio dos que se encontram./ Há o silêncio dos que se afastam./
Não, por favor, nada digas…/ Se chegas, não preciso de palavras/ Se partes/ de
que me servem as palavras? (p.83). Um silêncio onde tudo é,
simultaneamente, sede e fonte, começo e desenlace.
No mesmo rumo de um amor sem margens está Edgardo Xavier.
Ouçamos: Toco-te/ vibro na promessa/ de
um amor pleno/ e gemo a sedução/ do teu corpo nu […] (p. 39) ou no
belíssimo verso Só o coração percebe a
tua mão estendida […] (p. 40). Dois excertos de uma amor-paixão feito prece
e dádiva. Na maturidade dos seus versos, procura pelo silêncio, o trilho por
onde se enredam os afectos. Sei do raspar
das palavras/ por todos os sentidos […] (.p. 35) refere, porque ele [sabe
também que] caminhos sem nome/ Atravessam
a febre das plantas e o hálito da terra. […], p. 37. Muito bela também esta
poesia.
Teresa Brinco Oliveira desdobra-se no interior de si
mesma como se amar fosse o seu lado
oculto, título que dá ao poema que cito: […] Sou essa que tem face mas sou a outra também./ […] Sou o imaginário do que não digo, o mistério
do que desejo […] (p. 151). É um ser na duplicidade do sentir. A tentar
desocultar as sombras do olhar. E solitário me soou o seu silêncio quando diz Soçobram memórias orvalhadas/ do tempo em
que os deuses em mim colhiam flores […] p. 153 e mais à frente: Longe vai o tempo e a demora não traz a luz
[…] (p. 155), É quando me silencio que
renasço […] (p.159). São versos a completar o sentido uns dos outros e
mutuamente se inquirindo.
Podia citar outros excertos igualmente significativos
nesta película de Amor e Silêncio. Podia escolher outros temas: a natureza, o
tempo, os instantes, o que se apressa o que tarda, a paisagem as sombras, a luz,
e o assombro de tudo a revestir o esteio que acolhe os versos.
O exercício desta escrita intensifica-se com a íntima
viagem dos poetas para cumprirem a interior travessia do sentimento.
E diremos todos com Sophia: “no quadro sensível do poema vejo
para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.”
Parabéns a todos pelos vossos poemas e que este vosso
encontro seja interminável.
Obrigada.
Graça Pires
30 de Maio de 2015
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